data-filename="retriever" style="width: 100%;">Neste primeiro terço do século 21, eis-nos diante da morte como coletividade e não apenas como indivíduos. Certa vez, fui colocado diante da morte como possibilidade próxima. Em casa, a dor crispou meu tórax e tombei. Ambulância, hospital, exames e o veredicto: dissecção na aorta torácica com perda de sangue. Urgência em corrigir, advertência sobre riscos, familiares acorrendo para um alô ou um tchau antes da cirurgia de emergência. Até a anestesia fazer efeito tinha consciência de que as chances de continuar vivo eram de 50%. O indivíduo e sua noção de finitude, a morte espreitando. Onze anos depois, com maratonas de tratamentos e outras intercorrências, aqui estou um tanto menos emocionável nas questões de morte individual. Aliás, digo que desde então sobrevivo, mas não vivo, pela intensidade existencial à qual tive de renunciar.
A humanidade sofre hoje uma pandemia. A doença é leve para com muitos, grave para outros e fatal para alguns. Os falecidos viram estatísticas amplamente disseminadas: 10 óbitos na cidade, cem no Estado, mil no país, no boletim diário. A ciência tateia com o vírus até então desconhecido, mas já criou vacinas cujos processos fabris demandam tempo para que estejam aplicadas em número de pessoas suficiente para barrar a epidemia. Como o ataque virulento é nas vias respiratórias o uso de ventilação mecânica e da crucial intubação se impõe para milhares de pacientes. Famílias tantas choram suas perdas definitivas ou vivem a ansiedade pelo parente hospitalizado.
Neste primeiro terço do século 21, eis-nos diante da morte como coletividade e não apenas como indivíduos. Talvez assim tenha sido em outros tempos com a gripe espanhola, a peste bubônica e tantas outras pragas flagelantes. Mas, nossas gerações vivas o máximo que tinham conhecido fora a AIDS e seus reflexos em comportamentos pessoais e coletivos. Ou a tensão da guerra fria numa era nuclear.
Vários profissionais da saúde, exaustos, comparam a uma situação de guerra. A correria das enfermarias e unidades de terapia intensiva parece o rescaldo de um campo de batalha. Há também outra similitude com um tempo bélico: o temor do ataque de surpresa, do bombardeio atingindo a cidade ou a casa de alguém, agora se reproduz na tensão de que a moléstia possa acometer aqui ou na vizinhança, o vírus sorrateiro atacar um familiar ou amigo. A morte não é uma ameaça somente individual, mas coletiva como na guerra. Ela, que me espreitou como indivíduo, hoje, se transforma em elemento psicossocial, está no imaginário tenso da coletividade.
A escandalosa surpresa fica por conta do tal de negacionismo em pleno terceiro milênio. Sim, existe gente que não vê pandemia, não acredita no vírus infectando pelas vias aéreas, desdenha das recomendações de não se aglomerar, abandona os cuidados e o uso da máscara. Outros preferem entregar os dedos de vidas humanas, mas não os anéis das economias e empregos. Tempos difíceis e comportamentos lamentáveis ou incompreensíveis.